Réccua Douro UltraTrail

Views



«O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta».
                                                                                    Miguel Torga in "Diário XII"


Neste sábado, 13 de Setembro de 2014, dia de São João Crisóstomo, patrono da eloquência sagrada, senti-me um “homem titânico a subir as encostas, volumes, cores e modulações” que gravaram a ferro em brasa uma marca indelével nas retinas dos meus olhos.

O Douro é como um cavalo selvagem, domado pela vontade férrea do dono. São socalcos esculpidos no xisto por titãs primevos. É luz, cor e cheiro. Tudo em dose excessiva.





Na 6ª feira, após uma jornada de trabalho, eu e a Lena saímos de casa, por volta das 19h30, entusiasmados por mais uma oportunidade de percorrer este nosso belo país.

Às 23h15 chegávamos a Peso da Régua. Tivemos apenas tempo para fazer check-in no Hotel Régua Douro e em seguida dirigi-me para o Museu do Douro, onde estava sediada a organização da prova.

Assim que lá cheguei perguntei pelo João Marinho, o organizador deste soberbo evento e pelo Hélder Monteiro, experiente fisioterapeuta, fundador da TMG – Terapias. O João veio logo receber-me calorosamente e apresentou-me ao Hélder. Eu tinha contactado previamente o João pois a minha participação na prova de 80 km estava em risco, mercê de uma entorse ocorrida num treino na Serra no sábado anterior.




Com algumas manobras eficazes, as mãos experientes do Hélder aliviaram o edema pronunciado que eu tinha no tornozelo direito. De seguida ligou-me o pé e fiquei logo a sentir-me bem melhor. Acordámos que eu iniciaria a prova dos 80 km e a meio avaliaria se estaria em condições de terminar.

Levantei o dorsal às 24h, hora de fecho do secretariado, tendo primeiro mostrado o material obrigatório, e voltei para o Hotel. Cerca das 1h30 lá adormeci, para o que iria ser um sono curto mas revigorante. 

O alarme tocou às 4h50 e depois de vestir o equipamento habitual tomei o pequeno-almoço mais frugal de todas as provas em que participei: meia-dúzia de bolachas e uma maçã. “Que se lixe”, pensei eu, como no primeiro abastecimento que houver.






Às 5h50 cheguei à linha de partida, no jardim em frente ao Museu do Douro, onde o meu dorsal foi controlado. Cento e poucos Trail Runners já se encontravam alinhados para o tiro de partida, era ainda noite escura.

Reencontrei o amigo Luís Ricardo, que tinha vindo com uma alegre comitiva alentejana no autocarro do Centro Vicentino da Serra e também o Nuno Rocha, colega da Vodafone, que se está a preparar afincadamente para o desafio “Vodafone First – UTMB 2015”.






Às 6h em ponto soa o tiro de partida e somos guiados pela povoação até sairmos para as vinhas circundantes. Levamos os pirilampos ligados para vermos o caminho. Temos uma subida e descida suaves pela frente até chegarmos ao abastecimento da povoação de Rede, a 14 kms, junto ao Douro, onde chegamos já dia claro. Aproveito para tomar o pequeno-almoço, enchendo a barriga de aletria docinha, que me sabe que nem ginjas (muita aletria ingeri eu ao longo de toda a prova...).

Tenho vindo sempre acompanhado pela presença reconfortante do Luís, e vou-me cruzando com o Nuno. Vejo outras caras conhecidas, como o Zé Capela e a Susana Simões.

De seguida seguimos para Mesão Frio, a 4 km de distância. A partir daqui o percurso vai ser sempre a subir até chegar ao alto da Senhora da Serra, a 1400 m de altitude.

Perto de Passos cruzamo-nos com um velhote que nos diz que se comermos as uvas levamos com chumbo grosso. Ficamos na dúvida se a ameaça era a brincar ou para levar a sério, mas na dúvida o melhor é não mexer na uva.

Vamos sempre subindo, por largos estradões e a paisagem vai-se modificando, tornando-se mais agreste e menos domada pelo homem.

Aos 27 kms o Ultra Trai e o Trail tomam caminhos diferentes. Do lado esquerdo espera-nos a famosa subida da Diana, um autêntico cai de costas! Num quilómetro e meio vamos ter que subir 300 m. Bem, não adianta chorar, o melhor é começar e só parar quando chegar lá acima. São 27 minutos de esforço contínuo até chegar junto dos bombeiros lá no alto, quais faróis vermelhos que se divisam ao longe e guiam a nossa nave até porto seguro.






Daqui seguimos para o alto do Marão, na Senhora da Serra, a 1400 m de altitude.

As vistas são deslumbrantes, de cortar a respiração, que já vai esforçada da subida. Aqui em cima sentimos o bálsamo do vento fresco, naquilo que até agora tem sido um dia quente e húmido.






Vejo uma figura a correr desalmadamente pela encosta abaixo. Mas a corrida é na direção oposta! penso eu. Quando o vulto chega mais perto lá identifico o amigo Luís Duarte que anda a treinar para o Ultra Pirinéu e a tirar fotografias aos atletas dos 80 km. O homem sobe e desce a encosta como se não houvesse amanhã!  (no fim-de-semana seguinte haveria de demonstrar a sua grande forma ao conseguir o 10º lugar nos 103 km do Ultra Pirinéu, em Espanha).




O abastecimento do pico, no km 34, é o Oásis porque todos ansiamos e onde chego após 4h52 de prova. Ingiro mais uma dose abundante de aletria e batatas fritas. Atesto os dois bidões de 500 ml que levo ao peito e arranco atrás da Susana Simões que sai disparada.


A aletria é minha!!!


Agora vai ser sempre a descer até o abastecimento de Soutelo, no km 45. Até aqui o tornozelo tem-se aguentado muito bem, por isso decido continuar (até hoje nunca abandonei nenhuma prova e não iria ser com certeza esta a primeira vez).

A descida é mais dura no tornozelo do que a subida, mas enquanto tiver a sorte de não voltar a torcer sinto que consigo prosseguir (aliás, eu sou mais de quebrar do que de torcer).

Após o que pareceu uma eternidade, lá chego ao Soutelo, onde resolvo não me alimentar pois vou um pouco enjoado. Nunca é uma boa opção e pouco depois já me irei arrepender desta decisão irrefletida, quando me começar a faltar o gás (com a experiência que já levo ao fim de 5 anos de Trail Running e ainda continuo a repetir os mesmos erros… ) Aproveito para ir à casa de banho pois a barriga não se está a sentir nada bem e reclama insistentemente com a forma como a estou a tratar.

Sigo com alguma dificuldade em direção ao km 57. Do km 55 ao km 57 vou ter que aguentar uma subida de 350 m. Esta subida ainda me custa mais do que a da Diana, dado o meu estado um pouco debilitado e o cansaço acumulado. Às 8h18 de prova lá chego finalmente ao abastecimento de Fontes. O nome é muito apropriado. Para mim é uma fonte de repouso, alimentação e conforto, que bem estou a necessitar. Mais uma dose generosa de aletria, diluo duas saquetas de sais num dos bidões e saio reconfortado para as derradeiras etapas da prova.

Agora vamos descer até Sta. Marta de Penaguião, no km 64. Aqui espera-nos uma originalidade gira. Atravessamos o relvado do campo de futebol local, que se encontra aberto de propósito para nos receber.

O calor faz-se sentir com muita intensidade, sobretudo nos vales pouco arejados. Bebo água constantemente, como se tivesse o radiador furado. Felizmente a organização teve a excelente ideia de assinalar no dorsal os pontos onde iríamos encontrar fontes dentro de povoações, que eu aproveito sempre para abastecer. Numa delas recordo-me de encontrar o Nuno Fofoni, com ar de já ter sofrido bastante com o sol.






Ganho a amizade de dois membros da organização ao afirmar em tom de brincadeira que vim cá de propósito de Lisboa só para castigar o corpo.

Cumprimento todos os populares com que me vou cruzando e eles devolvem sempre o cumprimento, com dizeres muito pitorescos: “que Deus o auxilie!” (bem preciso...)

A certa altura um casal de velhotes comenta quando passo, uns 10 metros atrás de um atleta mais jovem que levava bastões: “olha, este é mais velhote mas não precisa das canas!”

Existem imensos voluntários no terreno e também estes são muito hospitaleiros, alegres e prestáveis. Abençoada gente do Norte!

Próxima paragem: Medrões! Km 71. Mais uma subida e lá estou, depois de passar pelo meio das vinhas e cruzar-me com gente que vindima. O cheiro a uva fermentada é uma constante ao longo do caminho. Deve ser o teor alcoólico da humidade que paira no ar que me mantém animado e pronto a continuar.




10h24m de prova e chego a Medrões. Faltam-me 8 km para o fim. Já cheira a meta! Alimento-me e bebo abundantemente pois vou necessitar de todas as gotas de água que conseguir levar comigo. Agora é dar tudo o que me resta até ao fim. 2 km a subir seguidos de 6 km a descer. Na descida já se consegue ver a Régua ao fundo. Não é uma miragem! É altura de acelerar! E lá vou eu feito louco num sapateado violento e ritmado encosta abaixo.

Quando finalmente chego à Régua, sou orientado pelos voluntários ao longo das ruas até chegar à ciclovia, da qual se divisa o Museu ao fundo. Vejo um atleta uns 300 metros à minha frente. Ele olha para trás e acelera, com medo de ser ultrapassado na reta final. Eu não quero saber disso, a única coisa que me interessa é cruzar a meta. Quando estou quase a chegar sou saudado efusivamente pela Rita, mulher do Luís, e pelo Zé Presado e restantes companheiros de Portalegre. Isso dá-me alento para acelerar e minutos depois cruzo a meta muito satisfeito por mais um desafio completado, 80 km em 11h20m.






Eu e o Luís Ricardo



Sou recebido pelo animador de serviço, que vai perguntando aos atletas o que acharam da prova e depois pelo João Marinho, que incansável vai supervisionando tudo para nada falhe. Troco ainda umas palavras com o André Amorim, que me conta do trabalho todo que a organização teve para garantir que não faltava nenhuma fita no dia da prova. É um trabalho duro mas essencial, pois por vezes as fitas são retiradas por populares que ignoram a sua utilidade ou chegam mesmo a ser comidas por vacas! Se faltarem fitas no percurso todo o esforço de meses pode ser deitado a perder.
Sou visto novamente pelo Hélder, que fica surpreendido por eu ter feito a prova toda e pelo estado do meu tornozelo não se ter agravado desde o dia anterior. Afianço-lhe que se deve sem dúvida ao tratamento muito eficaz que me tinha feito na véspera.

Depois de trocar impressões com vários atletas que vão chegando e outros que já tinham chegado, dirijo-me ao hotel para tomar um banho retemperador e para me preparar para o jantar na casa da equipa alentejana, que graciosamente nos tinha convidado a ambos.

Não há dúvida que ninguém bate em hospitalidade os alentejanos. Comemos abundantemente, muito bem regado com umas minis bem fresquinhas, que me permitiram repor os sais perdidos.
A boa disposição e alegria foram constantes.

Voltamos para o Hotel, de onde disfrutamos de uma vista magnífica sobre o Douro e os socalcos da vinha.

No dia seguinte às 10h encaminhamo-nos para o Museu do Douro para assistir à cerimónia de entrega de prémios.





O local escolhido é soberbo. Um dos principais patrocinadores da prova, o Réccua Douro vinho do Porto tem um stand onde nos dá a provar alguns dos excelentes néctares da região.




Os vencedores das várias provas (15 km, 40 km e 80 km) são chamados ao pódio. O vencedor da classificação geral da prova dos 80 km masculinos é o Rui Luz com um tempo fabuloso de 9h17m.
A vencedora feminina é a Ana Rocha Gonçalves, em 10h47m, logo seguida pela Susana Simões em 10h49m.






Nos escalões masculinos são distribuídos prémios nas categorias de Elite (Séniores) e Masters (maiores de 40 anos).

Qual não é a minha surpresa quando ouço o meu nome dado como segundo classificado do escalão Masters! Diga-se o que se disser, é sempre uma alegria ir ao pódio. Não é o mais importante, mas pode significar a cereja em cima do bolo.




Depois da entrega de prémios a organização chamou toda a equipa organizadora e atletas para o palco, onde tirámos uma bela foto de conjunto. A organização esteve a um nível bastante elevado, com apenas alguns pequenos pormenores a destoarem por contraste com um conjunto em regra impecável.






Depois ainda fomos almoçar ao restaurante Douro In, onde fomos muito bem servidos.


E assim terminou mais um excelente fim-de-semana. Pudera eu durar ainda muitos anos a gozar de saúde para poder viver muitos mais momentos destes.


Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

UTAX - Ultra Trail Aldeias do Xisto - 2014

De Vela até aos Açores

5º AXTrail series 2012

Provas Insanas - Westfield Sydney to Melbourne Ultramarathon 1983

Insanidade nos Tempos de Covid - Estrelaçor 180K - A prova - Frigus detegere

Le Grand Raid des Pyrénées

MIUT - Madeira Island Ultra Trail

Ultra Trail Atlas Toubkal - UTAT 2016 - A prova

Pequenos conselhos práticos - Solo Duro